Escrever pode mudar tudo.


sexta-feira, 13 de março de 2020

O Jeito Certo de Ser Mulher

Não existe um jeito certo de ser mulher. As mulheres são de muitos jeitos, algumas mais delicadas, outras mais fortes; algumas mais sensíveis, outras menos. Algumas querem ter filhos, outras não. Algumas se dedicam à família, outras ao trabalho. Algumas gostam de homens; outras, de mulheres, outras ainda gostam dos dois.

As mulheres são de muitos jeitos, mas o que têm em comum é um certo modo de olhar a vida, um certo modo de sentir o mundo. Em todas as culturas, o feminino está ligado às colheitas, à doação, à entrega, à multiplicação, às dádivas, à abundância, ao amor. Amor é o que multiplica e enriquece, é o que fermenta e fortalece, é o que de um, faz dois e de dois, três.

Talvez as mulheres ainda sejam tão vergonhosamente reprimidas e violentadas em nossa sociedade porque reprimimos o amor, não sabemos amar. Algumas mulheres ainda são tratadas como posse, como coisa, algumas ainda são traficadas, outras são machucadas e mortas em nome de um “amor” falso. Muitas mulheres são silenciosamente silenciadas por normas sociais insidiosas: mulher não pode isso ou aquilo, não é de bom tom. Haveria um jeito certo de ser mulher, que essas normas pretendem ditar.

Não há amor sem liberdade, não haverá amor sem mulheres livres, plenas, com direitos iguais aos homens. Livres para amar, gozar, trabalhar, reproduzir, comandar, governar, exercer poder, livres para serem do jeito que quiserem ser.

Não há um jeito certo de ser mulher. Há um jeito certo de amar as mulheres, que é permitir que o feminino floresça em suas múltiplas formas. Quando esse dia chegar, seremos melhores como pessoas, nossa sociedade será mais justa, viveremos melhor os nossos ligeiros dias sobre a Terra.

sábado, 30 de março de 2019

E você? Qual a Sua Verdade?


Nesses tempos de pós-verdade, nunca a Verdade foi tão importante e tão incompreendida. A maioria de nós pensa a Verdade como algo precioso, absoluto, que devemos impor às outras pessoas, como um trator. Temos o direito sagrado – mais! – temos o dever de nos ofender, de nos magoar, de reagir quando a Verdade não é respeitada. É nossa obrigação lutar e defender a Verdade.

A Verdade, contudo, só existe em comunhão com o Outro. Não há algo como a minha Verdade diferente da Verdade do Outro. Só existe a minha Verdade que convive, respeita, acolhe, conversa com a Verdade do Outro porque a Verdade nunca exclui, sempre abarca. A Verdade é o Absoluto.

Talvez o modo mais feliz de encontrar a Verdade seja pela poesia. É muito significativo que, no Brasil, se leia tão pouco poesia e, quase como consequência, estejamos tão conflagrados, intolerantes e amargos. A Poesia é própria Verdade. Tudo o mais é simulacro. Quando digo Poesia não me refiro só aos poemas, refiro-me a tudo aquilo que nos acende. Estamos diante da poesia quando percebemos que estamos plenamente vivos. Acesos.

Alguns poemas me fazem isso. Na verdade, muitos poemas me fazem isso. É uma sensação maravilhosa. O amor me faz isso. A corrida me faz isso. Escrever me faz isso. É uma sensação indescritível. É a própria bem-aventurança. Sei que estou diante da Verdade, da minha Verdade, da Verdade que eu vivi para descobrir, da Verdade que vou continuar desvelando até o final. Não é a Verdade das religiões, das doutrinas, das ideologias, das ideias desse ou daquele filósofo. É a Verdade que eu reconheço. Sei que é Ela. Quando me deparo com ela, acendo. Incendeio.

A minha Verdade não pode excluir a Verdade do Outro. Eu descobri que Ela vive para o Outro, Ela se descobre no Outro. A minha Verdade se torna Verdade na Verdade do Outro, ainda que o Outro não goste de correr, não saiba ler, não entenda nada de poesia ou até mesmo não tenha encontrado o amor.

O Outro, por absurdo que seja, por detestável que seja, é sempre maravilhoso. O Outro é sempre espantoso porque, com tudo que possa ter de intolerável, ele também carrega a Verdade, ainda que a carregue escondida, esquecida, ainda que ele (o Outro) não tenha sido capaz de acessá-la, de descobri-la, de vivê-la. Por isso é preciso respeitar o Outro, conviver com o Outro, compreendê-lo, amá-lo, porque me assustando com ele, maravilho-me com a Verdade que existe em mim e está escondida nele ou que se manifesta nele de modo diferente.

Descobrir a própria Verdade é a razão pela qual vivemos. Quando a encontramos, nada mais importa. Chegamos. Na verdade, tudo importa. Encontramos. Só podemos descobrir a nossa Verdade quando respeitamos a Verdade que se manifesta no Outro.

Descobrir a própria Verdade é coisa simples, nada tem de mirabolante. É saber, por exemplo, que gosto de azul. Não posso justificar isso, só me resta aceitar. Gosto de Caetano Veloso. Quando leio poesia, quando escuto Belchior ou Ednardo, quando escrevo, tudo faz sentido. Não sei como, nem porquê. Sou eu assim. Nada precisa ser justificado, nada precisa ser provado. Eu me aceito. Eu sou e respeito o Outro como ele é.

E você? Qual a sua Verdade?

Nagibe de Melo Jorge Neto
Juiz Federal. Professor. Autor de O Amor, A Vida e Os Dias: 50 poemas e um breviário.

sexta-feira, 8 de março de 2019

Todo Poder às Mulheres


As mulheres sofrem e muitas ainda não compreendem por que sofrem. A castração feminina (e do feminino) começa em casa, nos comentários, nos murmúrios, nas fofocas e, grande parte das vezes, termina em casa e no trabalho, na violência verbal, nos socos e pontapés, no feminicídio. No último ano, 4,7 milhões de mulheres foram agredidas fisicamente; 4.254 foram mortas, desses homicídios, 1.173 foram casos de feminicídio (quando o crime é motivado pela vítima ser mulher).

Muitos homens e muitas mulheres (!) ainda pretendem controlar o corpo, o pensamento e (pasmem!) até mesmo o sentimento das mulheres. Quando o homem trai, bem... foi mal, desculpe, é apenas um homem. Quando a mulher trai, é chamada de "vagabunda", às vezes pelo homem com quem se relacionou (!), quase sempre por outras mulheres (!).Vencemos a luta pelo divórcio em 1977, mas as mulheres ainda são socialmente apenadas quando se divorciam. As mulheres separadas ainda são vistas como ameaça por outras mulheres.

Quando era pequeno, lembro das pessoas sussurrando nas costas de mulheres muito queridas: "ela é divorciada", como se carregassem uma marca tenebrosa. Ainda outro dia, para minha absoluta tristeza, ouvi um comentário do tipo: "mas ele vai deixar ela viajar com a fulana, ela não é separada?". Oh Senhor! Tende piedade! Ela não sabe o que diz! A ignorância reina absoluta naquela cabecinha miúda.

Vivemos em um canto do planeta tão desgraçadamente atrasado que a amizade entre um homem e uma mulher é vista como coisa impossível, com desconfiança ou desaprovação. O que vão pensar? O que podem falar? Mulheres conversam com mulheres, homens conversam com homens. Nas reuniões sociais sentam-se em rodas distintas. Há assuntos de mulheres e assuntos de homens. Quando os homens são promíscuos em seus relacionamentos, bem... são homens. Quando as mulheres se relacionam com muitos homens, são "galinhas", "periguetes", são perigosas, desajustadas, coitadas.

Eis aí a origem da violência contra a mulher, dos insultos verbais, dos socos, dos chutes, dos espancamentos, das mortes. Se você se enquadra em algum dos padrões descritos acima, é duro dizer, mas infelizmente você também é responsável. Você é responsável por cada olhar de reprovação, por cada comentário maldoso, por cada julgamento. Acreditamos que as mulheres não podem isso, não podem aquilo, não podem falar alto, dizer palavrão, sentar de pernas abertas, não podem gritar quando gozam (as putas podem, as mulheres não). E as punimos severamente se elas ousam pensar e sentir de modo diverso do que lhes foi determinado pela sociedade patriarcal.

Ainda vivemos nas cavernas. Na África, todos os anos, cerca de 3 milhões de meninas e mulheres sofrem mutilação sexual, que consiste em amputar o clitóris e partes dos pequenos e grandes lábios da vulva (ONU, 2015). No ocidente, sequer entendemos direito como a mulher goza e como é o órgão genital feminino. Para explicações detalhadas, divertidas e estarrecedores vale a pena ler A Origem do Mundo: uma história da vagina ou a vulva vs. o patriarcado, da quadrinista sueca Liv Strömquist.

Lembro que Jesus andava com as prostitutas. Ainda hoje as condenamos e denegrimos. Quantas não sofrem enredadas nas redes de prostituição! Quantas não sofrem por não ter o trabalho legalizado! É preciso, no dia de hoje, homenagear as prostitutas, esquecer por um instante a degradação moral que envolve o ato de vender o corpo, e lembrar, nem que seja por um instante, da necessidade, da dor e da doação sublime que é o ato de oferecer o próprio corpo.

Convivo com mulheres maravilhosas, aprendo muito com todas elas. Minha homenagem mais que especial à minha fantástica esposa, à minha filha extraordinária, à minha mãe, à minha sogra, às minhas irmãs, cunhadas, sobrinhas e primas. Minha homenagem às minhas professoras, alunas, colegas e amigas queridas. São todas exemplos para mim. As mulheres são fantásticas. Sofro com as mulheres e me maravilho com elas. Nada é tão lindo como uma mulher andando ou dançando, falando, cantando, discursando ou fazendo o que quiser, desde que seja livre.

Que um dia, todas as mulheres possam estar livres das amarras que lhe são impostas. Que elas possam pensar, sentir e fazer o que quiserem. Que possam amar e gozar como quiserem. Que possam mandar. Todo o poder às mulheres.


Nagibe Melo
Juiz Federal. Professor da UniChristus. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?



quinta-feira, 7 de março de 2019

Cinzas


O carnaval acabou. Mas como acabou!? Como pode!? Dá uma tristeza sem fim. Nada como o carnaval pra mostrar que tudo passa, que a vida é uma grande ilusão e que, na maior parte do tempo, nos deixamos enganar. Mas que ilusão gostosa! A euforia, a sensação de que, sim! Toda fantasia é possível. Sim! Nós podemos quase tudo ali de frente pros Transnacionais, meio embriagados, com os braços pra cima, as pernas cansadas de pular, enquanto o trompete, o tamborim, a guitarra, o baixo, a percussão, a bateria ensurdecem todos os quases e se´s.

Pessoas de todas as idades, de muita idade, de pouca idade, jovens já não tão jovens, cabelos brancos, cabelos tingidos, corpos malhados e peles flácidas se sacodem como a dizer em tom de desafio: vamos pra frente, ainda temos o carnaval, ainda temos a cerveja, hoje as mulheres estão dançando! E poucas coisas são tão belas quanto uma mulher dançando. A vida segue um pouco desajeitada na quarta-feira de cinzas, mas é de algum lugar bem lá no meio dessa euforia que muita coisa do que é humano faz sentido.

O carnaval nos infunde essa sensação fútil, quase ridícula, de potência. É ridículo aproveitar a vida como se, em grande parte das vezes, ela não fosse um sem sentido terrível e cruel. Mas aí a banda toca e a nossa euforia também sem sentido, nossos excessos também sem sentido, todo o nosso desejo de gozo parecem fincar um sentido bem lá no meio do desespero. Um sentido fútil, irônico, um sentido que nos grita ao ritmo do frevo: eis tudo, a vida é agora! Amanhã morremos e a vida segue sua sina, com seus erros, esperanças e vícios.

Hoje, ainda é terça. Por isso eu escuto Vida Boa, composta pelo nosso Fausto Nilo e pelo Armandinho (sim, o cara do trio elétrico) pela enésima vez, de novo, de novo e de novo. Foi a minha música do carnaval. E eu nem a conhecia! Desde sábado já a ouvi umas trocentas vezes, sempre na voz do Caetano Veloso. O Caetano canta carnaval como ninguém, canta tudo como ninguém. E tomo mais uma cerveja e fumo outro cigarro e outra cerveja. “Aonde o sonho vai, meu sonho vai / meus sonhos vão”. Amanhã é quarta-feira de cinzas, vou me consolar com a corrida, deixo de fumar mais uma vez e a vida volta com toda a sua caretice, com todas as obrigações, com todo seu cinza.

Na quarta-feira nos bate essa tristeza de termos feito cinzas de todas as nossas ilusões de potência e gozo. Mas tenho pra mim que, apesar da tristeza, alguma coisa nasce das cinzas, alguma coisa que diz “a vida é agora, amanhã morremos e, aí sim, tudo serão cinzas”.

domingo, 16 de setembro de 2018

Alegria, Alegria!

A Bianca tem 17 anos. Eu, como todo pai, babo. Babo. Acho a minha filha maravilhosa, linda, sensacional! Eu admiro tudo nela: o jeito de falar, o jeito de vestir, o jeito de dançar. Eu acho o máximo o jeito como ela é amiga dos amigos e amigas, a maneira como ela enfrenta os desafios e encara a vida.

Durante os últimos 17 anos eu fiz um milhão de coisas com a Bia: brinquei na praça, ensinei-a a nadar e a andar de bicicleta, tomei banho de piscina, de mar, de rio, de açude, fui ao cinema e ao teatro, li pra ela, contei histórias, brinquei de esconde-esconde, de fazer coceguinhas, fui pra dança, ouvi músicas, muitas músicas.

Ouvi todas as musicais infantis do tempo dela, os DVD’s Xuxa Só para Baixinhos fizeram sucesso absoluto aqui em casa, até hoje, se alguém der o tom, sou capaz de cantar boa parte das músicas de cor. Os musicais da Disney foram a minha trilha sonora durante anos:. Toy Story, Aladdin, Famila Adams, A Era do Gelo. Ela dançou, tão pequenininha, todos esses festivais com a Rossana Pucci. Eu batia muitas e entusiasmadas palmas da plateia. Eu sonhava com o High School Musical de tanto que escutei, assisti e dancei. Sim, eu também dançava me fazendo de Zac Efron para conquistar minha pequena musa, para ser aquele cara bacana aos olhos dela.

Quando ela entrou na adolescência, a casa foi invadida por uma trilha sonora diferente, eu não conhecia quase nada: do quarto dela ou da sala vinha funk, conheci o Nego do Borel (e gostei); sertanejo: Luan Santana, Gustavo Lima e você, Marília Mendonça, Simone e Simaria; o forró eletrônico do Wesley Safadão (ow nome!); a malandragem da Anitta e um monte de gente que não lembro.

Ela também escuta uma música alternativa excelente, dessas que é sucesso no You Tube, mas não aparece na televisão. Recomendo a Mariana Nolosco, é sensacional! Foi luta pra eu descobrir quem é a Mariana Nolasco. Sempre que eu perguntava, a Bia revirava os olhos, respondia meio de má vontade, defendendo ferozmente o seu espaço. Mas, como eu sou um pai meio chato e entrão, sempre arranjava um jeito de perguntar de novo.

Nunca consegui guiar o gosto musical da minha pequena infanta, cedo desisti de sequer sugerir qualquer coisa. Talvez algum dia eu tenha tentado os Beatles, assim muito de leve. Acho que todo mundo tem que tentar os Beatles. Sem duvida nenhuma, será sua melhor chance. Ela não deixou transparecer qualquer entusiasmo. Se gosta tanto quanto eu, ainda não dá o braço a torcer. Jogo duro. A Bia tem uma personalidade forte e faz questão de deixar os limites da sua individualidade muito claros. Eu babo. Mas suspiro. Depois da adolescência, então, muitas vezes fiquei totalmente broken heart. Tá certo, bem lá fundo, sinto orgulhoso de toda essa resolução e potência. Mas suspiro.

Pois bem, pois bem, meus amigos. Eu não poderia deixar passar em branco que, desde ontem, dia 15 de setembro do ano da graça de Nosso Senhor de 2018, escuto, vindo do quarto da Bia, persistentemente, escuto Chico Buarque, escuto Caetano Veloso! Roda Viva, Alegria, Alegria, e até Apesar de Você. Parece que o disco está furado! Parece que eu voltei no tempo e estou redescobrindo Chico e Caetano, que já eram o que são quando comecei a ouvi-los. Escuto surpreso, meu coração canta calado, não deixo transparecer a emoção.

Ver se formarem os filhos, essas pessoas tão diferentes e tão parecidas conosco, é mesmo maravilhoso.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Ainda e para sempre Dolores.

Li a notícia surpreso, triste, procurava entender. Cliquei no link, abriu o vídeo do show de Paris em 99, e me veio tudo de novo. Meus vinte e poucos anos. A vontade de engolir o mundo. Não era só a voz dela. Era a voz, claro, o modo assustador como ia da ternura à raiva na mesma melodia. Mas não era só a voz. Era a atitude. Era a dança.

Vê-la no palco será sempre catártico pra mim, como um ritual xamânico irlandês. Tenho assistido e assistido e assistido. Como passei tanto tempo sem vê-la? Em algum momento, dobramos em uma esquina correndo atrás da vida e, de repente, a vida nos atropela como um caminhão em disparada. Quando nos damos conta, ele já vai longe.

No show de Paris (https://youtu.be/de4AUcVWfSI), em 99, ela tinha 28 anos. No show de Basileia (https://youtu.be/g3zRQXK7zoc), em 2007, ela tinha 36. A mesma força. A mesma graça. Na Suíça o público é supercomportado, mas vejam como ela dança. Assistam. Tem tudo no YouTube. Faz bem para qualquer ser humano. Se você não sabe do que Sócrates falava quando falava do seu daemon, taí.

Quando cantava, Dolores encarnava o seu próprio daemon, sua essência mais profunda. Quanto mais assisto, mais me cai a ficha. Como é difícil expressar essa essência! O daemon. Nós vivemos encolhidos, escondidos de nós mesmos. Dolores se expandia quando cantava. Os jovens precisam vê-la! Precisam escutá-la! Vejam! Escutem! Expressem seu daemon! É isso que salvará o mundo!

Uma mulher e uma guitarra. Que força! Que ternura! Como ainda é transgressor! E belo! A maioria dos homens têm medo dessas mulheres. Como diria Chico Buarque, poucos nasceram pra enfrentar o mar.

Penso na Bianca: minha filha, não se deixe conter, não se deixe enquadrar, veja a Dolores! Porque toda escravidão das mulheres começa nos modos. As meninas não podem sentar assim, as meninas não podem falar assado, as meninas brincam de boneca. Meninas não gritam, meninas não dizem palavrão, meninas não tocam guitarra.

Veja a Dolores, Bianca: não tinha coreografia, dançarinos, efeitos de palco, nada. Não é como Madona ou Lady Gaga. Dolores é outra pegada. Era ela e seu daemon. Desajeitada. Deselegante. Autêntica. Encantadora porque absolutamente verdadeira. Totalmente despida. Vê-la cantar é uma epifania.

Minha filha, às vezes as mulheres se preocupam tanto com a beleza que é impossível achá-las debaixo de tantos modos, pó e maquiagem. Veja a Dolores. Atitude. Autenticidade. Aqui está toda a beleza. Veja como a menina dança. Alguém pode ser, ao mesmo tempo, mais deselegante, encantadora e autêntica? Nunca vi. Dostoiévski dizia que a beleza salvará o mundo. Não é qualquer beleza, é a beleza como se expressou em Dolores O’riordan.

Vá em paz, Dolores. O mundo é mais belo por causa de você.


domingo, 1 de outubro de 2017

Oficina com Gonçalo M. Tavares

Não era grande nem imponente. Não havia empáfia ou presunção. Entrou na sala quase cabisbaixo, a voz baixa. Carregava uma mochila surrada, óculos de grau desses com correias que amarram uma haste à outra por trás do pescoço, para que não sejam esquecidos nalgum canto. Pediu que os alunos fizessem um U com as carteiras para que ficassem mais próximos. Ficaria mais fácil falar, mais fácil escutar. Gostava das pessoas próximas. Nenhuma elegância, a não ser a elegância de mostrar-se comum e ir se revelando aos poucos. Nem nas roupas havia presunção ou prestação de contas, uma calça de brim marrom clara e uma camisa preta amarrotada, que deixava entrever a cueca preta quando levantava os braços. Difícil relacionar aquele homem com o multipremiado da fotografia, aquele de quem Saramago disse “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater”. Na fotografia era outro, ousado, desafiador, pronto para afirmar todo o seu valor. Ali, diante de nós, não.

De modo natural, como se não fosse preciso, provável ou possível, Gonçalo Tavares começou lentamente a cativar cada um dos ouvintes de sua oficina. Apresentamo-nos. Um por um, declinamos nossos nomes e ocupações. Pessoas diversas. Mais jovens, mais velhos, quinze a vinte pessoas, de alunos secundaristas a acadêmicos pós-graduados.

Antes mesmo das apresentações, contudo, ao que me lembro, ele já proclamara o essencial. O tema ao longo do qual se desenvolveu toda a oficina da manhã e a palestra da tarde. “Escrever é ver de forma diferente. Tem a ver com ponto de vista. Escrever começa por encontrarmos um bom ponto de vista”. Registrar palavras no papel ou no computador é apenas a fase final da escrita. Escrever começa com olhar. Olhar com atenção. Reparar. É preciso parar, ver, dedicar tempo à pessoa ou coisa que será colhida na memória, depois transformada e registrada na escrita. O olhar é a matéria-prima do escritor, é quando ele colhe os frutos que serão transformados em suco.

Escrever tem a ver com estar isolado”.  Foi a segunda pérola jogada. Era como se dissesse escrever é difícil, escrever é duro. E contou como se isola em um pequeno apartamento em Lisboa, na alucinação que é escrever. Quando recebe a visita dos pais e os hospeda, eles que moram nalguma província do interior, nem mesmos aos pais concede lhe interromper. É um ato de amor não interromper a alucinação da escrita. E os pais, quando lhe querem falar, simplesmente despacham pela brecha da porta fechada um bilhete. E essa compreensão é amor. “Abrir a porta destruiria completamente aquela alucinação que é escrever”.

Essas ideias impactantes, ele as ia dizendo assim em voz baixa, como se tudo fosse coisa naturalmente sabida.

Há uma ligação entre a escrita, o desenho e a matemática. Outra pérola atirada. “O traço é a forma como o homem pensa. O traço dá origem ao desenho, à escrita e à matemática”. O alfabeto todo pode ser feito com apenas alguns traços. Pena que nos distanciamos do desenho, a partir de algum ponto ainda bem cedo na infância.

No primeiro exercício, pediu-nos para desenhar uma casa errada. Em seguida foi comentado cada um dos desenhos para nos mostrar que “em termos de criatividade o erro, a ideia de erro é muito potente.” O erro, assim como alguma restrição, algum obstáculo, alguma limitação favorecem a criatividade. “A liberdade total não é criativa”. O ser humano pensa por oposição ou aproximação. E foi identificando as operações mentais que comumente fazemos para chegar à ideia de casa errada: eliminação, eliminação parcial, inversão, torção, separação, cortar aos pedaços, achatamento, espremedura etc.

No segundo exercício deparamo-nos com a limitação da linguagem. “A linguagem nunca consegue chegar à precisão exata”. Para ver é preciso tempo. “Tempo é fundamental para a escrita.” Para escrever é preciso olhar, reparar, no sentido de observar por muito tempo, deixar que a coisa ou pessoa se revele pelo abrandamento do olhar. O olhar está abrandado quando a respiração está calma.

Mesmo a linguagem objetiva dificilmente consegue ser suficientemente precisa. A precisão é alcançada pelo abrandamento do olhar ou pela construção de imagem. Alguns escritores produzem imagens de rara precisão. É por meio de imagens que Luís de Camões alcança uma estupenda precisão nesses versos:

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Ele nos pediu para olharmos para o rosto da pessoa ao nosso lado e descrevermos em voz alta do modo mais detalhado e objetivo possível o que víamos. Olhar com vagar, mirar, repousar o olhar e a mente no rosto ao nosso lado. Para isso não se pode olhar de rabo de olho, não se pode tresolhar, passar os olhos, é preciso virar-se, direcionar-se para a pessoa, encarar, repousar o olhar estando em frente dela.

Ao meu lado estava uma menina. Eu me virei para ela. Ela se virou para mim. Ficamos separados pelos joelhos. O exercício foi um pouco desconcertante. O olhar desnuda. Posso dizer que minha intimidade com aquela menina aumentou um grau. O olhar vagaroso revela segredos do observado.

Depois de mirá-la por tanto tempo e descrever seus cabelos pintados de amarelo, seus pequenos olhos castanhos amendoados, os supercílios gordos, os cílios bem definidos, nem longos nem curtos, seus lábios carnudos, as marcas de catapora aqui e ali, a maior um pouco acima do meio do nariz largo, a mais profunda um pouco abaixo do canto exterior do olho esquerdo, o sorriso envergonhado que deixavam ver dentes ligeiramente manchados, as pequeninas elevações na pela macia, como se ainda quase fossem explodir em acnes, denunciando sua adolescência, depois de repousar o meu olhar no rosto dela durante um bom tempo, perguntei-lhe seu nome, como que para protegê-la ou para me proteger. O nome protege. O nome é linguagem e a linguagem, ao mesmo tempo em que revela, esconde o real.

Conversamos um pouco para nos esconder dos nossos olhares. Vi-me também profundamente observado, analisado, detalhadamente descrito, eu velho com idade para ser pai dela. A idade nos atropela nos momentos mais banais. Ela cursava o terceiro ano do ensino médio e queria fazer cinema. Pois bem, se eu pudesse usar da subjetividade, diria que seu cabelo amarelo gritava uma vontade de poder e alguma irreverência própria de quem quer fazer cinema.

No terceiro exercício, Gonçalo chamou nossa atenção para uma ação que iria praticar. Que todos olhassem, que todos vissem ao mesmo tempo o que ele iria fazer e depois descrevessem o que viram. Eu a descrevi assim:

O professor contou até três e abriu a tampa do pincel azul, com um certo ímpeto, como se dali fosse sair algo maravilhoso, como se fizesse um gesto mágico, misterioso, inapreensível. Nós precisaríamos desvendar o mistério. Descrever o que ele havia feito. Mas o que fez afinal? Abriu o pincel azul de modo expressivo, os cotovelos levantados, como se fosse uma criança apresentando um número de mágica. Faltou apenas a palavra mágica. Qual seria a mais apropriada? Abracadabra? Shazam?

Ao lermos o que havíamos escrito, percebemos que cada um viu diferente. Cada um viu do seu próprio ponto de vista, no seu próprio tempo. O tempo da escrita é diferente do tempo do acontecimento. Ao descrevermos a ação, alguns alargaram os eventos, outros foram mais objetivos. “O escritor tem o controle do tempo.” Esse poder sobe à cabeça de muitos. Não pareceu ter subido à cabeça do Gonçalo.

Não há objetividade na escrita, portanto. Eis tudo. Cada um tem um ponto de vista. Enxerga do seu próprio modo, com seus próprios preconceitos e valores. Ele chamou a objetividade de “a tontice da ideia de objetividade”. Não há verdade que não seja a verdade do escritor. Na palestra da tarde, ele iria dizer que a objetividade é um dos grandes males da humanidade. A objetividade é sempre uma verdade que se quer à força impor ao outro. Eu concordo. Acho que Habermas concordaria também.

No quarto exercício, foi-nos apresentado o poder do acaso. Para os gregos, o acaso era importante porque determinado pelos deuses. A civilização ocidental moderna, contudo, erigiu o homem e a decisão humana à suprema potência, desmereceu o acaso. O homem é senhor de suas escolhas e de seu destino. O acaso é a desordem, o acidente, o que deve ser suprimido.

Na criação, contudo, o acaso é poderoso. Funciona como o obstáculo ou a limitação que atiça a criatividade. Ele pediu que disséssemos cinco letras ao acaso. E, C, I, T, O. Agora formem frases com cinco palavras, cada palavra começando com uma dessas letras nessa ordem. Eva caminhou incandescente totalmente omissa. Eu comi indefinível torta ouro. Eram comparsas intocáveis todos os outros. Eles combateram incitando todo o ódio.

O acaso pode ajudar a que palavras se encontrem de modo incomum. O acaso favorece a poesia. Gonçalo lembrou Arthur Ribaud, “poesia é o encontro raro entre palavras”. Nesse sentido, a poesia é o oposto do lugar comum. “A Literatura é o combate ao lugar comum”.

O escritor precisa treinar os músculos da linguagem, precisa treinar como a linguagem resolve problemas. O jogo de letras ao acaso é uma equação de primeiro grau. Não tivemos a oportunidade de estudar as equações de segundo e terceiro grau, quando, além da primeira letra, a frase seria limitada pelo contexto e pela narrativa. Ces´t dommage. Lembro o francês porque ele lembrou a OuLiPo e a OuLiPo surgiu na França. Como sempre, a Wikipédia me socorre: “OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle, algo como oficina de literatura potencial) é uma corrente literária formada por escritores e matemáticos que propõe a libertação da literatura, aparentemente de maneira paradoxal, através de constrangimentos literários”.

Minhas ultimas anotações reforçam todo o resto. É o Gonçalo falando devagar, suave, como quem não precisa alardear a verdade nem se jacta de conhecê-la.

Se eu quero treinar a escrita, devo treinar o olhar.
Se eu quero mudar a escrita, devo mudar o olhar.
Escrever é olhar.
Tenho algo a dizer de novo, quando olho de modo diferente.
Viajar, portanto, é escrever.
Experimentar coisas novas é escrever.

Foi aplaudido. Mesmo do que o merecido, éramos poucos. Seria necessária uma multidão. A tarde ele iria dizer que cultura se faz aos poucos. É preciso tempo para escrever e para fazer cultura. “Eu não pesco à rede, pesco à linha.” Lembraria as palavras de Cristo, no Evangelho. Pedi à futura cineasta que antes havia repousado em mim o seu olhar para tirar uma foto.

Saí da oficina olhando para tudo de modo diferente.

Obrigado, Gonçalo M. Tavares!



segunda-feira, 10 de abril de 2017

Uma praça virtual

As redes sociais, como o facebook, são uma ferramenta de comunicação que ainda estamos aprendendo a usar. Ninguém sabe ao certo o que é isso nem pra que serve (ou servirá). Estamos descobrindo juntos. Muito interessante termos a oportunidade de participar disso.

O certo é que o meio muda a forma e conteúdo da comunicação. Havia um tempo em que as pessoas falavam muito por cartas. Algumas coisas só eram ditas por cartas, mesmo entre pessoas que morassem na mesma casa. Aliás, quem me ensinou isso foi Standhal, em O vermelho e o negro. Quando o li, fiquei nostálgico. Lembro que tentei, por diversas vezes, manter uma correspondência com vários amigos, aqueles com quem sempre falava ao telefone. Não vingou.

Ainda hoje, há coisas que só podem ser ditas por cartas ou que ficam muito melhores ditas por cartas. Como não escrevemos mais cartas, essas coisas deixaram de ser ditas. A determinada altura, resolvi escrever cartas para a minha filha. Converso muito com ela assim, embora ela converse pouco comigo... :-). Os jovens pensam rápido, têm pressa e eu não sou mais tão jovem.

O telefone dispensou as cartas. O e-mail mudou tudo. E o WhatsApp, de novo, mudou o jeito com que falamos ao telefone. Tá todo mundo ligado e nos damos ao luxo de comunicar coisas que não comunicaríamos antes. Seria muito caro, inapropriado ou impossível. Como isso aqui que estou fazendo. Para quem eu escreveria uma carta com este conteúdo? Para quem ligaria falando estas coisas meio sem nexo?

Nas redes sociais, coisas banais se misturam a discussões políticas, que num instante se transformam em arengas. A intimidade vai da fome a reflexões existenciais passando pelos gostos. Ainda não conseguimos graduar nossa exposição no ponto ótimo. É tudo novo. Às vezes o filme sai queimado; outras vezes, escuro demais.

Essa besteirada toda do facebook às vezes nos entedia, mas também areja. Vemos as pessoas, lemos as notícias, ouvimos as fofocas. Falamos de coisas sérias e de bobagens. O facebook se parece muito com uma praça de cidade do interior. Toda cidade do interior tem a sua pracinha. Em Quixadá, todas as noites íamos pra praça ver as pessoas, conversar bobagens e coisas sérias, saber das novidades. Quem é este? Fulano. Conhece de onde? Da praça.


Há pessoas maravilhosas que conheci na praça de Quixadá. Papos incríveis. Minha relação com algumas dessas pessoas nunca se aprofundou. A praça sintetizava e moldava nossa comunicação. Hoje não temos mais a praça, temos o facebook.

quarta-feira, 29 de março de 2017

Abismo


















Ao Dimas Macêdo



Estiveste na beirada do abismo, oh poeta!
De lá divisaste as maravilhas da 
Pobre e esplendorosa alma humana

Suas profundezas abissais 
Os picos recobertos da neve mais branca
Onde o frio congela a ternura
E o vento fustiga dúvidas atrozes

De pé encaraste mistérios tremendos
O olhar transido e extenuado de vida
Perdido na bruma, pisaste o exato limite 
Entre teu ser e tudo que o transcende

Mais um passo era o Nada
Ninguém escapa ileso, oh poeta!
Tu traz os olhos vazados de luz
E os lábios ressecados de morte

Da beirada do abismo cantas o inefável
Anuncia profético o que nossos olhos 
Medrosos não se arriscariam a mirar
Mas nosso coração anseia em frêmito

Ah, covardes! Refugamos os desvãos da alma!
Cegos para as maravilhas do mundo
Tu és, poeta, nossos olhos

Onde só temos casca
Tu és, poeta, nossa pele
Sentimos em ti o gelo que queima
E o frio dilacerante do sol

Dois anjos te seguram ao pé do abismo
Um deles canta, o outro grita
A tua alucinação, poeta, é nosso consolo
Nas noites escuras somos nós em ti
Nas promessas do dia és tu em nós

Nagibe de Melo Jorge Neto

terça-feira, 28 de março de 2017

Janela

Estou sentado ao lado de uma pequena janela de vidro. Em cada fila de duas cadeiras, há uma janela. Já viajei durante muito tempo no corredor, quando me esticava para ver lá fora. Há algum tempo consegui sentar junto à janela. É maravilhoso, o vento bate no meu rosto, assanha os cabelos e resseca meus olhos. Quando esfria demais ou quando há muita fumaça sou obrigado a fechar a janela e me distrair com algo aqui dentro. Esqueço a janela. Aqui, não há assentos marcados, vamos nos acomodando como calha.
O trem anda ora rápido, ora devagar. De quando em quando, para nalguma estação. Vejo as pessoas vendendo e comprando, o movimento agitado nas grandes plataformas, a emoção das chegadas e das despedidas, os acenos. Alguns homens, mulheres e crianças carregam bagagens imensas. O movimento tedioso nos pequenos lugares, um cachorro boceja, um homem agasalhado espera sozinho.
As paisagens jamais se repetem. Há campos floridos e desertos, há névoas densas, há noite estrelada sobre uma imensa planície. A lua clara ilumina as montanhas ao fundo. Muitos dormem, muitos dormem. Eu tento acordá-los, mostrar a beleza dalgum lugar, um cervo que corre. Muitas vezes me exasperei tentando mostrar um imenso lago, o belo, o fantástico, o absurdo. Tudo passa pela janela deste imenso trem que é como o tempo, não se detém.
Com a idade, decidi aproveitar mais a viagem. Não incomodo mais as pessoas querendo lhes mostrar isso ou aquilo. Recostado na cadeira, silencio ante o mundo que se transforma à minha janela. Fico maravilhado com o que vejo. Algumas vezes é sublime; outras, terrível. Silencio. Aos poucos vou descobrindo que é impossível mostrar a paisagem para alguém. É impossível. Cada um vê diferente.